Num esbarrão, meus ossos quebram como vidro
O telefone tocou: ''Gostei do seu currículo, Katya. Posso ver você amanhã?''. Era minha primeira entrevista de estágio. O pessoal da empresa não sabia do meu problema, mas não importava. Afinal, o que contava eram minhas habilidades profissionais!
Quando cheguei, foi um susto. Não esperavam uma deficiente. Levei um chá de cadeira de quatro horas. ''Desculpe, mas o diretor está em reunião'', disse a recepcionista. ''Tudo bem! Volto amanhã'', respondi. No dia seguinte, lá estava eu. Duas horas depois, me atenderam.
''Você estava com medo de mim?'', perguntei, sem meias-palavras. O rapaz ficou branco e se justificou: ''É que muitas pessoas vêm aqui e se aproveitam da condição de deficiente''. Santa mediocridade! ''Minha competência me trouxe até aqui'', retruquei. Ele concordou, sem graça. Essa foi apenas uma das muitas situações constrangedoras que já enfrentei.
Meus ossos ''de vidro''
Brinco que estou há 32 anos no lucro. Isso mesmo. Os médicos me deram apenas uma primavera de vida. Nasci com peso e medidas normais. Mas, no parto, abri o berreiro sem parar. Algo estava errado. ''Ela tem a doença dos ossos de vidro. Quebrou as duas pernas''', disse o ortopedista, ao me examinar.
Meço 1,20m e ando com dificuldade. Não posso me esforçar muito. Meu esqueleto é superfrágil. Um esbarrão e pronto! Mais um osso quebrado. Nos primeiros meses eu não podia nem chorar. O choro comprime o corpo, e é fratura na certa. Por isso, sempre tive que usar cadeira de rodas.
Minha mãe é meu ídolo. Não fossem os esforços dela, eu não estaria aqui hoje. Desde bebê, ela me distraía com apitos, bolinhas de sabão, bexigas... Era pra eu forçar a respiração e desenvolver os ossos que envolvem os pulmões. Ela também me colocou na natação com seis meses. E, ao completar meu primeiro ano, ganhei uma baita festa!
Independência
Aos 3 anos, entrei na escola. Minha mãe também. Ela passava todas as manhãs comigo, com medo de que acontecesse algo.
Foi no ensino médio que percebi que a vida não seria mamão com açúcar pra mim. Entrei em um dos colégios mais tradicionais de São Paulo. Pois a direção não encasquetou de me tirar? Primeiro, com palavras: ''É muita responsabilidade para nós, sugerimos que se retire''. A partir de então, continuar ali se tornou uma questão de honra.
Jogaram sujo. Mudaram as aulas do térreo para os andares superiores, onde eu nunca chegaria. Meus amigos se sensibilizaram. Brigaram por mim. Permitiu-se, então, que eu fizesse as disciplinas em outra unidade.
Mas a diretoria não se deu por vencida. Chegou ao ponto de sumirem com minhas notas! Quando reclamei, eis a explicação: ''Não sei, talvez o motoboy as tenha perdido com o malote''. Melhor escutar isso do que ser surda! Mais uma vez, os professores intervieram e encontraram as avaliações. Terminei o colegial com um rendimento bem acima da média. Oba!
Entrei no cursinho, onde dei meu passo inicial pra independência. Mamãe sempre me levou e buscou em todos os lugares. Certo dia, resolvi ir ao shopping com meus amigos depois da aula. Dessa vez, sozinha. Na verdade, era só atravessar uma avenida. Um trajeto simples pra quem vê de fora. Pra mim, foi uma aventura inesquecível.
Ah! A faculdade... Fiz administração na PUC-SP. Foi a melhor época da minha vida. Cenário de namoricos, amizades e grandes conquistas. Já no primeiro ano fiz um bate-volta pra praia com a galera. Que emoção! Também tirei carteira de habilitação adaptada e comprei meu possante. U-hu, liberdade!
Fonte: Abril
Nenhum comentário:
Postar um comentário