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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O drama das crianças dos ossos de vidro


Osteogênese imperfeita, doença genética marcada pela fragilidade óssea que acomete bebês, é cercada de desinformação. Tratamento é caro e centros especializados no país ainda são poucos                                                                               

Diagnosticado com a doença depois do nascimento, Miguel Caldeira, de 6 meses, recebe carinho da mãe, Taís, e retribui (Beto Novaes/EM/DA Press)


O instinto protetor das crias é uma reação natural dos seres vivos. Entretanto, o desconhecimento no cuidado pode levar a sofrimentos impensáveis. Para entre 15 mil e 60 mil nascimentos (não há estudos precisos), uma criança nasce portadora de osteogênese imperfeita, doença também conhecida como ossos de vidro ou ossos de cristal. O mal genético do tecido conjuntivo, que tem como característica principal a fragilidade óssea, se traduz em manifestações clínicas variáveis, mas principalmente pelo grande número de fraturas, deformidades nas pernas, fêmur e braços, tom azulado dos olhos, alteração na dentição, deficiência auditiva e baixa estatura.

Trata-se de uma deficiência molecular na proteína chamada colágeno tipo 1, presente nos ossos, na pele e nos tendões. Dependendo de como essa proteína é produzida, de formas diferenciadas em qualidade ou quantidade, o portador apresenta manifestações clínicas de maior ou menor severidade. De acordo com o ortopedista pediátrico Tulio Canella, referência em Minas Gerais no diagnóstico e tratamento da doença, a osteogênese é pouco difundida no meio médico, até por sua baixa incidência. Mas um dos problemas mais comuns é que casos de ossos de vidro são comumente confundidos com a síndrome da criança espancada. Assim, os pais que buscam ajuda para o sofrimento do filho acabam acusados de maus-tratos pelo conselho tutelar, quando não acusados e até levados à Justiça. Por isso, é preciso um entendimento para um diagnóstico diferenciado.

Em 1991, uma portaria do Ministério da Saúde tratava do diagnóstico e dos procedimentos para a constituição de centros de referência da osteogênese imperfeita e indicava locais públicos (de atendimento gratuito) onde poderiam ser constituídos, desde que comprovados, os procedimentos de formação de equipe multidisciplinar e locais em condições de atendimento. Cidades como Fortaleza, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e o Distrito Federal montaram os centros, mas outras regiões ainda estão desabastecidas, como é o caso de Minas Gerais. Como não há no estado um centro especializado, Tulio Canella tornou-se muito procurado por pais e equipes de saúde para orientar sobre os procedimentos que minimizem o sofrimento ao portador da doença: “Em Minas, somente nos meus registros, temos 60 casos”. O médico faz um trabalho praticamente voluntário de pesquisa, atendimento e tratamento. 

“De maneira geral há uma dificuldade para abordar certas patologias e a osteogênese é uma delas. Há mais de 10 anos venho trabalhando para que o Hospital das Clínicas (da Universidade Federal de Minas Gerais) seja credenciado como referência no acolhimento desses pacientes, mas não temos tido sucesso”, revela o ortopedista. Onde não há centro especializado, os pacientes ficam prejudicados, precisando acionar a Justiça, seja para conseguir a medicação (dependendo do caso, a criança precisa tomar um remédio cuja ampola de 60mg custa entre R$1,2mil e R$ 1,5mil) seja para implantar a haste de correção de deformidades. Em Minas, a direção do HC/UFMG foi procurada, mas informou que a única pessoa que poderia falar sobre o tema estava de férias. 

Segundo Canella, são catalogados 12 tipos de osteogênese imperfeita para estudos genéticos, mas a apresentação clínica se baseia em quatro que vão desde a formação óssea até as fraturas que ocorrem geralmente depois dos 2 anos. Algumas crianças andam e apresentam poucas deformidades, algumas apresentam apenas escleras azuladas (nos olhos) que são do tipo um, mais leve. Nas mais severas, a criança tem estatura muito baixa, deformidades na coluna e nos membros inferiores. Dependendo dessas apresentações, tem-se como avaliar, traçar um diagnóstico e tratar.

Como tratar 

Antigamente, os pacientes morriam muitas vezes com poucos meses ou anos de vida, de colapso da musculatura cardiovascular. Com a adoção do medicamento penidronato  o tratamento evoluiu – a ação da droga é ampla para diminuir a taxa de perda de matéria dos ossos. Segundo a Associação Brasileira de Osteogenesis Imperfecta, criada em 1999 por pacientes, a resposta ao tratamento tem sido positiva, incluindo a diminuição da dor, melhora da mobilidade e, portanto, independência maior dos pacientes e menor incidência de fraturas. Além do penidronato, crianças com ossos de vido passam por cirurgias corretivas. São colocadas hastes para fortalecer os ossos. Hoje há uma haste similar a uma antena de carro, que acompanha o crescimento do osso. Isso impede que a criança seja submetida a inúmeras cirurgias, como 
ocorre com a haste fixa.

Sofrimento amenizado pelo amor


Miguel Caldeira da Fonseca Nadu, hoje com 6 meses, filho do auxiliar de marketing Wellington Pereira da Fonseca Jr., de 23 anos, e de Taís Batista Caldeira, de 20, teve seu quadro diagnosticado como ossos de cristal dias depois do nascimento. Por ser talvez o primeiro caso ocorrido em Sete Lagoas, na Região Central de Minas, a equipe médica não tinha conhecimento da patologia. Durante a gravidez, detectou-se que havia algo de errado com o feto, mas os médicos não conseguiram determinar o problema. O parto, que deveria ser de cesariana, foi normal e a manipulação durante o procedimento provocou inúmeras fraturas na clavícula, braços e perninhas. Taís deixou o trabalho para cuidar de Miguel e o pai luta para conseguir recursos para tratar o filho: “Por não haver um centro de referência em Minas, o tratamento não é garantido na rede pública. Para tanto, tenho que acionar o Ministério Público ou a Justiça”, diz Wellington. O bebê só teve atendimento pelo SUS e acesso ao remédio por determinação judicial.

Por ficar muito tempo imobilizado e sem ser manipulado nos primeiros meses, o crânio do bebê começou a crescer de forma desordenada. Foi preciso que a família organizasse um almoço beneficente e, com a ajuda de algumas entidades e da Prefeitura de Sete Lagoas, arrecadou R$ 13 mil para comprar um capacete para moldar o crescimento do crânio. Uma vez por mês a família vai a São Paulo, pois é a única cidade do país a fabricar o capacete e fazer a manutenção com o médico. Com um salário pouco superior a R$ 1 mil, a família conta com a ajuda de parentes e amigos para manter os cuidados. “Não me importo em passar o resto da minha vida correndo atrás de dinheiro ou do poder público para sustentar o tratamento do meu filho. Dou minha vida para não vê-lo sofrer.” Miguel já pode ser carregado pelos pais e vem apresentando evolução.

Ultrassom Na casa do bombeiro elétrico Kleber Belarmino e da mulher, Ana Maria Caldas Ottoni Belarmino, o diagnóstico veio no sexto mês da gravidez. “Fiz um ultrassom 3D para colocar no álbum, e os médicos perceberam que os membros superiores estavam mais desenvolvidos que os inferiores. Nosso bebê nasceu de parto normal, mas felizmente não sofreu fraturas durante o procedimento”, lembra Ana. Uma semana depois do parto, ela foi encaminhada ao setor de genética do HC/UFMG, onde o geneticista Marcos Aguiar detectou que se tratava de osteogênese imperfeita. “Já tinha ouvido falar de um único caso no exterior em que a mãe perdeu a guarda por maus-tratos. Fiquei apavorada, uma vez que no Brasil ninguém sabia de nada.”

Ana e a família foram encaminhadas ao ortopedista Tulio Canella para o tratamento. O Hospital Sarah Kubitschek foi indicado, por ser referência nacional em recuperação ortopédica, entretanto, ela conta que a unidade não oferecia acolhimento especializado para ossos de vidro. Mesmo assim Vinícius foi aceito para fazer fisioterapia. Depois de uma reavaliação, a equipe indicou a hidroterapia associada a um acompanhamento psicológico. Houve também orientação pedagógico e nutricional e logo o menino entrou na escola. Com apoio da equipe do Sarah, a mesa de Vinícius foi adaptada para que não representasse perigo de quedas e machucados. “Eles foram show de bola, apesar de não serem especialistas na osteogênese imperfeita, fizeram de tudo na adaptação: carrinho de bebê, a mesa da escola e agora na cadeira de rodas”, reconhece Ana Maria. Vinícius, com 8 anos, cursa o quarto período do ensino fundamental e, muito sorridente, está sempre brincando e conversa com todo mudo. Ele ainda não anda. Já se submeteu a diversas cirurgias corretivas. Quando perguntado do que mais gosta, responde sem pestanejar: “Cinema e leitura”.

Depoimento

Elian Guimarães

Repórter do EM

“Em meus 28 anos de profissão, esta foi uma das reportagens que mais me impressionaram. Primeiro pela capacidade de superação do ser humano, tanto do portador da síndrome quanto de seus familiares e equipes de saúde. A busca desesperada por algo que os conforte transforma cada descoberta em vitória. E não se trata de gente triste e transtornada. Pelo contrário, são pró-ativas, criaram uma ampla rede de solidariedade, em que compartilham experiências, descobertas e até mesmo equipamentos. Particularmente, o médico Tulio Canella me tocou pela disposição e incansável luta para ganhar espaço e conquistar avanços, além de dedicar-se voluntariamente para assistir pacientes e familiares.

As barreiras para que a informação circule nos meios de assistência à saúde me chocaram: não consegui quem explicasse a ausência de um centro referencial na UFMG, uma vez que seu hospital já acolhe pacientes. Tive respostas similares no Sarah e, no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Sete Lagoas, onde o pequeno Miguel se submetia a um tratamento, a equipe do EM foi impedida de entrar para fotografá-lo, mesmo acompanhada do pai da criança. Apesar de se tratar de uma doença cujos primeiros registros datam de 1.000 a.C., em múmias, há muito o que avançar em termos de informação, principalmente para poupar o sofrimento dos familiares em busca de respostas.”

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